
Bembe
A Festa dos Olhos do Rei
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APRESENTAÇÃO
BEMBÉ: A FESTA DOS OLHOS DO REI é uma exposição visual que revela, por meio da imagem, a profundidade histórica, simbólica e política do Bembé do Mercado — o mais longevo festejo afro-brasileiro pela abolição da escravatura e o único realizado por uma comunidade negra no formato de candomblé de rua. Celebrado desde 1889 em Santo Amaro, Bahia, o Bembé emerge como expressão de fé, resistência e invenção de vida diante da exclusão social que marcou o 14 de maio de 1888, quando a população recém-liberta se viu sem trabalho, sem moradia e sem direitos.
A exposição é parte integrante da pesquisa desenvolvida por Roque Boa Morte, que ao longo de cinco anos construiu um corpo imagético a partir de uma abordagem de escrita óptica e de uma metodologia decolonial de produção visual (ch'ixi). São mais de 9.000 imagens que hoje integram o acervo do Museu Afrodigital da Memória Africana e Afro-brasileira, mantido pela UFBA, representando uma importante contribuição à pesquisa acadêmica e à preservação da memória negra no Brasil e no mundo.
Entre os registros, encontram-se imagens inéditas do período pandêmico, captadas durante os anos em que os rituais precisaram se adaptar aos tempos de isolamento, medo e luto. A lente de Roque acompanhou crianças que cresceram, anciões que partiram, lideranças que resistiram — uma comunidade que, mesmo em tempos sombrios, seguiu dançando, orando, ofertando e celebrando.
Mais do que um testemunho visual, BEMBÉ: A FESTA DOS OLHOS DO REI é um gesto de afirmação, memória e pertencimento. O título faz referência a Xangô, orixá patrono do festejo, divindade da justiça e do fogo, aquele que tudo vê — e que olha pela festa, pela comunidade, pelo seu povo. Xangô, que também rege o caminho do fundador do Bembé e do próprio autor da pesquisa, olha por meio deles.
Aqui, a imagem não é apenas registro, mas também testemunho, oferenda e alicerce de um futuro possível.
Dr. João Mouzart/UFS
Antropólogo, Historiador e Professor da UFS

TEXTO CURATORIAL
No Tempo do Bembé – Memórias em Meio à Tempestade
O Bembé do Mercado transforma o espaço mais cotidiano da cidade — o mercado público — em terreno sagrado. Ali, onde as mercadorias se misturam à memória e à história local, os orixás chegam e ressignificam a arquitetura do cotidiano fazendo do gesto comum prática extraordinária e do solo diário, altar sagrado.
Ocupar o mercado com o Bembé vira então um gesto radical: uma afirmação de que o sagrado afro-brasileiro não ficará mais confinado aos bastidores, mas ao contrário, se reinventa e se manifesta em praça aberta, entre barracas, pessoas, objetos e festa, como proposto com a exposição Bembé – A Festa dos Olhos do Rei.
Pelos olhos de Roque Boa Morte, artista filho da terra, sinto este evento-manifesto como um gesto de viver “em meio à tempestade”, convocando os mortos, os ancestrais e os vivos a resistirem juntos em território partilhado. O patrimônio agora é o mercado e cada referente retratado é a encarnação do lugar de memória Recôncavo. Ali, todos os corpos guardam o que a História tentou apagar.
Roque enxerga com o corpo inteiro, com uma força que nasce do chão. Desde pequeno, ele caminha entre os ritos e afetos de Santo Amaro, atento às memórias que não se escrevem apenas com palavras. Sua presença neste trabalho não é a de um visitante ou observador, mas a de um herdeiro consciente de sua história, que transforma lembrança em linguagem, e devoção em gesto curatorial. Olhar para o Bembé através dele é reencontrar a festa por dentro — com ternura, rigor e profunda responsabilidade.
Saudando Exu, o senhor das encruzilhadas, o mensageiro entre mundos, Boa Morte, o olho que nos permite olhar o Bembé, recusa a obediência colonial e constroi suas próprias trilhas, ofertando o seu trabalho como força de transformação, comunicação e equilíbrio entre este mundo e o sagrado, onde vive nossa ancestralidade.
Nesse contexto, esta curadoria propõe ver o rito como escrita, o canto como testemunho, o corpo como resistência. E, se a história colonial produziu memórias da dor, seguimos (re)existindo apesar dela. Somos o rastro que os navios deixaram e que o Bembé insiste em transformar em vida.
Através do conjunto de fotografias escolhidas propõe-se uma escuta profunda dos sentidos da história e da resistência negra, fundamentais para a crítica do mundo colonial e para a emergência da festa como ferramenta/dispositivo contracolonial.
Nesta exposição somos convidados a ver/ler o Bembé como um arquivo inscrito na pele, resistindo à tempestade do racismo com a força dos ventos ancestrais. Esta mostra também é um convite à revisão do papel dos museus. Ao acolher o Bembé, a rua se abre ao sagrado, ao corpo e à oralidade como formas legítimas de conhecimento. Cada elemento exposto aqui é mais que objeto: é signo de pertença, de luta, de memória insurgente. Eles não pedem licença para existir no museu — eles obrigam o museu a se refazer diante de sua presença.
Reivindicamos aqui uma curadoria comprometida com a escuta, com a reparação histórica e com o reconhecimento da gente comum como leitores e fazedores de patrimônio.
Que esta exposição-travessia seja recebida pelas pessoas com respeito, abertura e reverência ao desconhecido, ao que não se curva, ao que se mostra ao tempo em que esconde artimanhas e astúcia de guerra. Aqueles e aquelas que sonharam um mundo mais justo, plural, negro e VIVO !.
Dra. Jamile Borges da Silva/CEAO-UFBA.
Antropóloga, Professora e Diretora do Pós-Afro UFBA.




