
FIGAS
Mãos Ancestrais
APRESENTAÇÃO
Tudo começou com uma figa de jacarandá. Objeto antigo, deixado por meu avô, que um dia veio parar em minhas mãos — e ali ficou, feito sussurro, chamando por escuta. Foi a partir dela que descobri: a figa não nasceu na África, mas chegou ao Brasil principalmente por mãos negras, recriada no corpo da diáspora como proteção, gesto, reza, espada.
Neste trabalho, percorro essa memória enraizada. Cada figa da série foi moldada na mão real de um filho de Orixá, com quem construí, em comunhão e escuta, visualidades que entrelaçam axé, ancestralidade e permanência. Cada detalhe importa: o metal escolhido, a conta de cor precisa, o búzio de ouro, a flecha de Oxóssi em forma de bracelete, o branco inteiro de Oxalufã. Cada signo é chave.
A série se debruça sobre a presença afro-brasileira nesse amuleto ocidental — presença que, até aqui, permanecia à margem dos olhares e dos livros. Para isso, caminhei entre o Gantois (em Salvador) e o Ilê Axé Ojú Onirê (em Santo Amaro), onde tradição oral e axés vivos me ensinaram o que o museu ainda não nomeia.
Este projeto é gesto ritual. Corpo-coisa que atravessa o tempo. Mão que repele o mal, mas também atrai o que for bom.

TEXTO CURATORIAL
Figas: atos e gestos para a transfiguração simbólica – ritual
A mão humana grafa o gesto – ritual. Uma vez direita, outra esquerda, ela contorna encruzilhadas, mistérios e saberes ancestrais tornando-se Figa: uma ação em que o dedo polegar enfiado entre o indicador e o médio transpõem a eloquência do gesto e se materializa em símbolo.
O conjunto de obras “Figas, mãos ancestrais” são representatividades de uma investigação que busca atualizar o sentido do símbolo Figa a partir da experiência-gesto afro-brasileira. As doze mãos: suas formas e sinais, configuram as inquietações do fotógrafo na composição imagética de elementos e práticas que fazem parte do seu entorno. Roque nasceu em Santo Amaro da Purificação, Recôncavo Baiano, espaço: corpo-território de resistência cultural e religiosa. Nesse locus, sua sensibilidade se amplifica tornando-se uma Força para manifestar genealogias e memórias através da visualidade.
Numa experiência autoperceptiva, a “Figa Omolu” abriu em lapso o meu campo de sentidos e deflagrou em mim um estado psíquico de recordação de quadros clínicos da infância conectados com a pele, as marcas de ascendência, as doenças cutâneas... Em questão de segundos - um lampejo de memória; um grito. Depois veio o silêncio que contorceu minha mente, e o que inicialmente tinha significado no campo da individualidade adquiriu uma conotação mais ampla, ou percepção expandida, uma totalidade cada vez maior que eu poderia chamar de conexão ancestral do poder do gesto-ritual ou o “transe” que as imagens coreografadas por Roque Boa Morte nos provocam.
Juci Reis
Curadora